Gabriel Cruz Lima é jornalista pela Faculdade Cásper Líbero e graduando em Letras pela Universidade de São Paulo. É autor de “O Último Romântico” (BAR Editora, 2020). Assim como o São Paulo Futebol Clube, está de volta no coração dos emocionados e a um passo de um título relevante.
Tirei o pó do meu chapéu de caubói, comprado por 22 moedas de prata do vendedor Salazar, muito dinheiro, para poder expiar quem me esperava. Segundo Roberto, o segundo sicário mais temido dessas terras, esse chapéu seria capaz de me deixar imune a balas durante um período curto de tempo e ainda deixaria a mira mais aguda.
Foco nos meus olhos, sobrancelhas rígidas, da categoria de homens que perderam o sorriso para o mal. A trilha cresce sob meus ombros, o pôr do sol como símbolo do ocaso da vida: é o último acerto de contas. Ou o primeiro. Ou o definitivo. Prefiro definitivo.
Definitivo, porque é o desfecho, o ponto em que tudo se finda no deserto. Torrão de terra laranja e uma bola de feno, óbvio, se não nunca seríamos caubóis. Masco fumo também na tocaia e cuspo em um balde. Pé de pano relincha um adeus enquanto toma água em um bebedouro de metal.
Tenho as costas rendidas por uma casa arroseada, com a madeira rangendo sob a batida das minhas botas. Não quero mais esperar, mas também não posso entrar assim, somos assassinos e não suicidas.
É simples, missão rápida, entrar, matar e sair. Bônus por estilo, quanto menos detectassem a presença, tanto maior seria a recompensa. E aí quem sabe, no fundo do cofre escondido, o dinheiro para uma cela nova, uma pistola cromada, ou até mesmo um cavalo novo, um alazão branco, porque não?
Vejo 30 segundos passarem com os auspícios de uma voz ao longe, narrando fatos coincidentes, a esposa sequestrada pelo xerife, o bando das Aves de Rapina acolhendo o pistoleiro errante em busca de vingança, amizades, assassinatos e roubos, e, no clímax, uma surpresa, a descoberta dupla: o paradeiro da amada que é também a traição dos comparsas mancomunados com os homens da lei, com o homem da lei, o xerife.
Estou à beira da ação, sobe um quarteto de cordas, um piano, todos os sentidos me conduzem à entrada do saloon. Seco minhas mãos na barra da calça. Como se tudo estivesse envolto de terra, olho para minha perna e divirjo uma marca visível com o contorno dos meus dedos, um borrão aguado feito de suor e nervoso. Caubói também sente medo.
Mas o medo, nesse caso, só reforça a coragem. Respiro fundo, beijo uma medalha com a foto dela no bolso. Eles nem me querem mais vivo, porque sou perigoso e muito cruel. Mato velhinhas e cachorros, comerciantes e padres, matei até um papagaio, ave sagrada, por pirraça. Talvez até crianças. O que dirá dos meus inimigos.
Mas antes de meter bala, alguém chora em outro lugar que não este saloon. Será um filho bastardo com alguma das meninas, ou ainda, alguma criança que, vendo a arma brilhando no reflexo do sol poente, desata a chorar pelo prenúncio de milhares de tiros.
Com um choro estridente ela me confunde, a trilha sonora é sobreposta por soluços e tenho a certeza de que, muito além desses meus inimigos tem alguém correndo risco. Me guio pela direção do choro, com a certeza de que essa voz vem secreta, de uma porta, um vão, ou beco escondido, propício para conquistas.
Vasculho os arredores com minha visão de águia careca, nada em chamas, nenhum banco sendo roubado, nenhuma donzela em perigo, nenhuma recompensa.
Tiro meu chapéu de caubói para aumentar o volume do mistério e vou por uma esquerda, mais à direita, e melindrado, persigo o som com as mãos, tateando as paredes de um corredor apertado e úmido. Um berço cercado por conchas, uma girafa que eu mesmo coloquei na parede com um medidor de altura em volta do pescoço. Outra girafa, de pelúcia, no chão, ao lado do estrado, é o motivo do choro. Uma criança balbucia algo e pede pro papai pegar.
A gente se parece um bocado, e o nariz dela, segundo meus cálculos, tem tudo para ser uma versão mais bem delineada do meu. Eu choro como ela, expressão de desconsolo diante de um tempo inamovível. A boca já se parece mais com a da mãe, a contrariedade já se formou completamente no canto do lábio, indicando que não terei escapatória além de uma execução muito dolorosa, como vê-la fazendo porta-retratos e chaveiros e camisetas de dia dos pais que eu não vou usar.
Tomo a girafa do chão sem deixar que a pistola saia do coldre. À distância do rosto da menina, estico a pelúcia e meço sem compromisso, medindo se o tamanho do dorso da girafa consegue tapar boca e nariz, se há algum risco ou perigo possível além de mim. Detenho os olhos já marejados no pendente acima, o carinho dessas conchas em cima do berço me lembra o movimento do ponteiro do relógio da sala do bando das Aves de Rapina. E um dos companheiros, o vendedor Salazar, aquele mesmo que estralava os dez dedos de mãos severas e me ensinava a domar cavalos, dizia que pau que nasce torto nunca se endireita, mas que o tempo não tem peso algum e estamos sempre a dois segundos de uma convulsão, e sempre repetindo uma experiência indolor, dando tiros a esmo nas latinhas de um terreno baldio ou na cabeça de alguém. Pode ser que ele não tenha dito isso, porque ele também não era muito de falar, mas eu entendi assim e assim ficou.
Ajeito meu bigode do meio oeste e deixo a girafa sobre a cabeça de uma menina já mais quietinha. Continuo o jogo com as mãos limpas, mais um troféu desbloqueado: violência sem limites.
Na manha, minha filhinha morreu de amores por mim. E de tanto que essa coisa deixa meu coração bobo, até dá vontade de sufocar: amar machuca demais até mesmo para o maior pistoleiro do planeta.
Volto ao controle da situação e sou imbatível nesse tempo suspenso, entro no saloon, mato todo mundo, tiro no ombro da metade, tiro no peito do xerife, tiro que me mata. Volto. Tiro na cabeça de metade, tiro na cabeça do xerife, bala no coração da amada. Sem experiência, só me pegarão vivo.
Da redação: este é o décimo quinto de uma série de 16 textos do autor Gabriel Cruz Lima. O folhetim sai toda sexta neste mesmo portal (Aboio) e nesta mesma hora.
As ilustrações são de Geórgia Ayrosa.